Quando um dos filhos tinha 15 anos, a gerente administrativa Lana Chistina Casarini, 62, descobriu que ele era usuário de drogas. “Achei maconha. Joguei fora na frente dele, pusemos de castigo, mas nada resolveu e ele só piorou”, lembra. Hoje, 26 anos depois, viu o filho ser internado cinco vezes, expulsou-o de casa e o viu morar na rua. Lana é uma codependente, pessoa que convive com quem tem vício em drogas.
Assim como o dependente químico precisa de tratamento, o familiar necessita de cuidados —sobretudo de atenção à saúde mental. A longo prazo, principalmente em quem já tem problemas emocionais, a situação pode desencadear condições ligadas à depressão e ansiedade, além de doenças cardiovasculares e degenerativas.
Se eu estiver bem, vou conseguir ajudar meu filho. Codependência é uma doença igual à dependência química, vivemos a vida do outro e isso tem que ser cuidado”. Lana Chistina Casarini.
No caso dela, a dependência do filho foi o estopim em um cenário já sensível. O ex-marido abusava do álcool e tinha episódios de agressividade com os filhos. Quando conseguiu comprar um apartamento, Lana se separou, mas viu o vício do filho piorar.
“Eu saía para trabalhar e ele me roubava. Tive que colocar ele para fora e impedir a entrada no apartamento. Dava 23h e ele fazia escândalo no prédio, ligava de madrugada, foram 15 dias infernizando a minha vida, porque não esperava que eu tivesse essa atitude”, lembra.
Caminho até o isolamento
Alguns sentimentos são comuns em codependentes. É natural que, primeiro, exista desconfiança sobre o uso. Quando não há mais como negar, essas pessoas tentam controlar as ações dos dependentes, gerenciando, por exemplo, os atrasos no trabalho e demais responsabilidades da rotina.
Depois, vem a culpa. “Junto à vergonha, são sentimentos frequentes, em especial para os pais. Principalmente a mãe. Eles sentem dúvidas sobre dar amor de mais ou de menos, buscam onde erraram”, descreve a psicóloga Claudia Cristina Oliveira, pesquisadora na ECIM (Enfermaria de Comportamentos Impulsivo), do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP (Universidade de São Paulo).
A culpa, além de torturar, favorece a manipulação, uma das estratégias da doença para a manutenção do vício. E então, mesmo sem perceber, a família pode favorecer o acesso à droga. “Nunca imaginei como agir e acabei sendo facilitadora. Dei vários celulares, tênis, porque ele dizia que tinha sido roubado”, conta Lana. Por isso, os especialistas indicam que, como em qualquer doença, é importante buscar ajuda médica para a dependência química ao identificar os primeiros sinais na pessoa.
Também é comum que o receio do julgamento faça com que a pessoa se isole. Algo perigoso, porque não desabafar pode aumentar o risco de estresse crônico, quadros patológicos de ansiedade e depressão, com desfechos graves —incluindo ideações suicidas.
“Luta desproporcional”
Convivendo há mais de 25 anos com o vício do filho, Lana entendeu que precisava se cuidar. “Nenhuma mãe gosta de ver o filho nesse estado, mas estou tentando me ajudar. Vou em psiquiatra, psicóloga, tomo remédio para ansiedade. Continuo trabalhando, porque necessito, sou sozinha. Mas estou procurando olhar mais para mim.”
Leva tempo até perceber que enfrentar a dependência química —e a codependência— é algo desproporcional. Sobretudo por desconhecerem o caráter multifatorial da doença, é comum que os familiares se isentem também de buscar ajuda para si, por receio de serem mais um peso em um contexto já complexo. Ou, ainda, por se sentirem “mais saudáveis” por não terem nenhum transtorno mental.
O tratamento aos familiares envolve acompanhamento psicológico e, se necessário, medicações. A terapia, inclusive feita em conjunto pela família, é um dos dispositivos para entender as dinâmicas psíquicas daquele círculo, analisando os papéis de cada membro, e pode ajudar na recuperação do usuário. Algumas pessoas, ao voltarem para a rotina após a internação, não conseguem se manter “limpas”, porque retornam também aos mesmos conflitos de antes.
“Ela se defronta com a mesma estrutura familiar, que era adoecedora. Quando o núcleo entende o processo, começa a mudar formas de agir com a doença, e com essa mudança de postura dos hábitos que perpetuava, o dependente começa a entender que família não vai concordar com o processo”, destaca o psiquiatra Rogério Jesus, mestre pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) e membro da APB (Associação Psiquiátrica da Bahia).
Há ainda casos em que a família mantém o dependente no lugar de antes, acreditando que ele deve mudar outros comportamentos, e implica com demais aspectos do seu estilo de vida.
Batata quente
Em alguns casos, é comum que um único familiar assuma a situação. Algo que Juliana* entende bem. Ex-usuária de drogas, atualmente convive com o vício do irmão. O marido também usa substâncias, mesmo que de forma mais controlada, segundo ela.
“Para internar meu irmão, sempre fui eu que resolvi. Sempre apoiei, porque eu acho que apoio moral é o principal”, conta. Juliana decidiu parar com as drogas ao engravidar, teve recaída, o que foi “uma sensação horrível”. “Eu sempre fui ansiosa, presenciei um fato e tive depressão muito forte. Depois que parei, quando vejo meu marido usando, fico bastante apreensiva, angustiada, me passam mil coisas na mente”, desabafa.
Assumir o controle pode não ser benéfico, explica o psiquiatra Pedro Ferreira, professor da PUCRS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul). Isso porque dividir a responsabilidade evita desgastes emocionais e físicos.
“É uma batata quente, ou seja, não esfria e alguém tem que segurar. Mas se só uma segura, ela vai queimar essa mão. A única forma de ninguém se machucar é rotar o papel de cuidador entre várias mãos, sejam outros familiares, amigos, médicos, profissionais da saúde mental, instituições”, alerta Ferreira.
Compartilhar diminui a carga, mas onde buscar ajuda?
Uma das principais ferramentas podem ser os grupos de ajuda mútua, com demais familiares de dependentes químicos. Esses espaços estimulam a troca com pessoas na mesma situação, ou que já vivenciaram momentos semelhantes, por isso são considerados locais de modelo. “As pessoas aprendem a não ser facilitadores da recaída e a manter a serenidade mental”, indica Ferreira.
André* descobriu nos grupos um novo sentido para a vida enquanto lidava com o vício do filho, que se tornou adicto na adolescência e teve um surto psicótico por causa das drogas.
“Quando comecei a frequentar, eles me deram um caminho. Meu filho ainda continuou usando drogas naquele período por muito tempo, depois entrou em uma religião de forma muita fervorosa, porque todo dependente químico é um compulsivo”, relata. Agora, mesmo com filho afastado do vício, ainda integra o Nar-Anon, uma das principais iniciativas de visibilidade à codependência.
Esses grupos oferecem aspectos acolhedores e livres de julgamento, explica a psicóloga Claudia Cristina Oliveira. “Muitas vezes, a pessoa começa a se isolar do resto da família, porque não quer ouvir críticas, começa a diminuir contatos. Lá, ela encontra quem vive o mesmo drama, está à vontade para compartilhar experiências e ouvir para encontrar soluções.”