Entre o fim de 2019 e o primeiro semestre de abril de 2020, a médica Paula Barros, 27 anos, viu seu peso aumentar. Fazia atividade física regularmente e mantinha uma dieta acompanhada por nutricionista, mas os quilos que continuavam ali começaram a incomodar. “Por conta disso, procurei atendimento com um endocrinologista, que pediu vários exames laboratoriais para saber se teria alguma outra causa para meu ganho de peso”, lembra.
Diante dos exames – que não encontraram nenhuma situação específica – e da confirmação de que ela poderia fazer alguns tratamentos, o endocrinologista apresentou as opções. Decidiram que Paula começaria a tomar injeções semanais de semaglutida, uma substância sintética que imita o hormônio GLP-1 e é vendida no Brasil com o nome comercial de Ozempic. Em forma de ‘caneta’, o remédio é originalmente destinado ao tratamento da diabetes tipo 2, mas passou a ser amplamente utilizado contra a obesidade. Hoje, é uma febre entre as pessoas que buscam emagrecer.
Paula fez o tratamento por um mês, mas acabou interrompendo na época. Ao longo de 2021, continuou com os quilos a mais. Tinha um Índice de Massa Corpórea (IMC) alto, apesar da atividade física e do acompanhamento nutricional.
“Aquilo estava me fazendo mal. Fui novamente ao endócrino e resolvi fazer o tratamento em dezembro do ano passado. Até hoje uso, com uma dose semanal”, diz ela, que perdeu 14 quilos.
Considerados seguros por médicos e especialistas em geral, remédios como a semaglutida e outros similares frequentemente recebem outros predicados: “de última geração” e de “alta tecnologia” são alguns dos mais comuns. Ao contrário da maioria dos medicamentos que já foram usados para emagrecimento no passado, não provocam efeito rebote químico ou mesmo dependência, por imitar uma substância natural.
Nos últimos dois anos, em especial, a venda só aumenta em drogarias. Mas a conta não é só da perda de quilos na balança. Nessa operação, pesam outros fatores: o impacto no bolso, devido ao preço dos medicamentos, e um movimento crescente de automedicação que tem preocupado profissionais de saúde de diferentes áreas.
Isso porque não se trata só do Ozempic. Embora esse seja o mais recente, nos últimos anos, outros medicamentos semelhantes têm sido lançados no mercado farmacêutico com substâncias parecidas, a exemplo da liraglutida (Victoza e Saxenda) e da dulaglutida (Trulicity). Em comum, todos eles têm um histórico do tratamento contra diabetes e o formato de caneta. A partir dela, podem ser doses semanais ou diárias, dependendo de qual seja o remédio.
“Essas medicações são novas ferramentas para o tratamento da diabetes e da obesidade. Mas existe uma grande confusão pelo uso inadequado, quando a pessoa só quer perder dois ou três quilos e usa por conta própria, sem assistência”, explica a endocrinologista Adriana Moura, do Itaigara Memorial.
De fato, nem todo mundo tem feito como Paula, que segue acompanhada por um endocrinologista até hoje. “Para mim, tem sido uma experiência muito boa. Mas quando eu comecei, ele fez toda uma investigação para saber a causa do aumento de peso. Quando a pessoa se automedica e vai na farmácia comprar, pode ser que ela emagreça, mas pode ser que deixe passar um diagnóstico”, alerta.
Demanda
Nas farmácias, estatísticas particulares ajudam a ter uma dimensão do aumento da procura por essas substâncias nos últimos anos. Em uma única rede, as vendas têm crescido ano a ano. De 2019 para 2020, a busca pelos análogos do GLP-1 (ou seja, o grupo que envolve todos esses remédios) cresceu 18%. No ano seguinte, já eram 23% a mais.
Já em 2022, apenas nesses cinco primeiros meses do ano, as vendas aumentaram 31% em relação ao mesmo período de 2021, segundo o farmacêutico Gibran Sousa, diretor do Sindicato dos Farmacêuticos da Bahia (Sindifarma).”A demanda é enorme hoje em dia, apesar de ser um medicamento de alto custo”, referindo-se aos preços.
Por conta do alto valor, todos esses medicamentos contam com programas de desconto que fazem com que, através das drogarias, sejam vendidos mais baratos. É como se o remédio fosse comprado diretamente com o fabricante, sem passar por uma distribuidora. Ainda assim, os valores são inacessíveis para a maior parte da população. O Ozempic, em sua versão de quatro agulhas com doses de até 1mg, chega a custar mais de mil reais.
“É uma procura que vem geralmente das classes A e B, porque mesmo com esses descontos, são medicamentos caros”, explica. O Victoza ainda é o mais vendido, por ser o mais barato da linha – algo em torno de R$ 450, com a redução.
Segundo o farmacêutico, aos poucos, a demanda tem passado a ser espontânea. Ainda que seja majoritariamente uma procura após prescrição médica, os casos de pacientes que compram por conta própria têm crescido. Tratam-se de medicamentos com a tarja vermelha – ou seja, têm indicação de que a venda é sob prescrição médica, mas sem retenção de receita.
“A demanda espontânea é geralmente a demanda de resistência. Ou seja, quem já usou outros fármacos, não deu certo e decide: ‘vou comprar esse negócio caro mesmo porque cicrano emagreceu’. Mas existem medicamentos que não chegam a R$ 100 e que costumam ser o foco de uma demanda espontânea”, acrescenta.
Nos consultórios, encontrar pacientes interessados nesse tratamento já é uma rotina, como conta a médica Carla Freitas, atuante nas áreas de endocrinologia e nutrologia.
“Todos os dias recebo pacientes solicitando o uso de uma ‘canetinha’ para a perda de peso, porque teve amigo que usou e perdeu peso, ou porque ele mesmo no passado usou e emagreceu ou até mesmo porque usou por conta própria e, como não emagreceu, resolveu buscar ajuda profissional”, conta.
As doses podem ser diárias ou semanais, dependendo do medicamento (Foto: Shutterstock) |
Como funciona
Essas substâncias são chamadas de análogos do hormônio GLP-1 por imitarem o hormônio secretado pelo intestino depois que alguém se alimenta. É ele o responsável por gerar a sensação de saciedade, de acordo com a médica.
“Ele age nos receptores do cérebro que controlam o apetite, causando a sensação de saciedade e menos fome. É como se, depois de utilizar esse medicamento, você comesse um pouquinho e tivesse a sensação de ter comido muito”, diz Carla Freitas.
O primeiro desses remédios foi o Victoza, aprovado no Brasil em 2010, com o objetivo de tratar o diabetes tipo 2. Segundo o médico de família e nutrólogo Washington Abreu, professor do curso de Medicina da UniFTC e da Universidade Federal da Bahia (Ufba), o diabetes tipo 2 é o que está relacionado com o aumento da fome nos pacientes.
“Quando a pessoa passa a usar o medicamento, ela diminui o apetite e, por consequência, a glicemia”, explica. Com o passar do tempo, médicos e cientistas começaram a observar que, entre os pacientes obesos com diabetes, havia um efeito colateral: o emagrecimento.
“Quando combinada com exercícios físicos, essa perda de peso acabava sendo muito importante. As pessoas acabaram por perceber que poderiam usar isso contra a obesidade, só que a dose para diabetes é uma e para obesidade é outra”, acrescenta Abreu.
Assim, o Victoza começou a ser utilizado também com esse objetivo, com esse público, no modelo “offlabel” – ou seja, com uma finalidade além do que está prescrito na bula, mas com orientação e prescrição médica.
O médico José William, 27, teve uma experiência com o Victoza em 2016, quando usou o remédio por seis meses. “Eu tinha uma indicação de obesidade e tinha um quadro de pré-diabetes. Por esse critério de pré-diabetes, meu endocrinologista fez essa indicação off label”, conta.
Com consultas mensais de acompanhamento, William conseguiu perder 15 quilos enquanto usava o medicamento. Mas, durante esse período, os efeitos colaterais eram muitos: dores de cabeça, enjoos, vômito. Assim, decidiu parar por conta própria e comunicou ao profissional que o atendia.
Ele fazia atividade física, mas comia muito pouco. Por estar enjoado a maior parte do tempo, tinha uma dieta muito restritiva. Depois que parou com a medicação, voltou a ganhar o peso que tinha emagrecido.
“É um remédio chato de usar. Você perde a vontade de comer. Todos os efeitos colaterais me deixavam assustados pelo risco de pancreatite. Acho que pesando o custo do remédio, o benefício e os perigos da liraglutida, eu não voltaria a usar, não”, avalia.
Na bula
Naquele mesmo ano, em 2016, aconteceu o lançamento do Saxenda no Brasil. A substância é exatamente a mesma do Victoza – a liraglutida -, mas, neste caso, a bula do remédio já diz especificamente que trata-se de um tratamento contra a obesidade.
Dois anos antes, o FDA (a agência de vigilância sanitária dos Estados Unidos) tinha aprovado por lá. A principal diferença entre os dois é que o Saxenda tem mais opções de doses – é possível começar com a mais baixa, de 0,6mg e seguir até 3mg.
Entre quem já usou, porém, a percepção de que não se trata de nada milagroso é comum. No ano passado, a advogada Ysla Freitas, 29, usou o Saxenda por quatro meses, por indicação de seu endocrinologista. “Quase implorei para que o profissional receitasse algum medicamento que auxiliasse no controle da fome e da ansiedade”, lembra, citando a indicação para perda de peso.
Tinha alguns enjoos, mesmo evitando comer alimentos gordurosos, mas o efeito colateral que fez com que ela decidisse parar com o remédio foi a sensação de desmaio ou fraqueza quando fazia exercícios físicos. Como só perdeu oito quilos dos 20 que eram o objetivo inicial, suspendeu o medicamento. Ysla também pretendia engravidar, então seguiu a orientação de sua ginecologista para evitar todos os remédios.
O efeito final não foi o esperado, porque avalia que teria perdido esse mesmo peso com atividade física e alimentação balanceada.
“Foi frustrante, mas valeu como experiência e alerta. Acredito que as pessoas buscam o emagrecimento fácil e rápido e, por isso, se iludem com medicamentos”, lamenta.
Pouco antes da pandemia, a enfermeira Luciana Lopes, 37, havia perdido 20 quilos que ganhou durante a gestação. Depois, como muita gente, voltou a engordar nos tempos de restrições mais fortes da covid-19. Sua endocrinologista, então, prescreveu o Saxenda no ano passado.
Luciana já tinha acompanhamento com nutricionista e fazia crossfit quase todos os dias da semana. Com o conjunto, acabou perdendo 10 quilos. “Não emagreci com o Saxenda, mas não engordei, porque acabei não mantendo a dieta”, diz ela, que passou a tomar o Ozempic há três semanas.
Nesse período, já perdeu dois quilos com auxílio da medicação – mas pretende chegar a 10. “Ainda é uma perda insignificante para o que eu quero, mas não adianta usar a medicação e não ter uma dieta. Não é milagre. A gente acha que tomando o remédio, derrete a gordura, mas não é assim. É um inibidor de apetite”, reforça.
Ozempic
Nos últimos meses, o Ozempic desponta como o mais buscado nos consultórios. Em junho do ano passado, o FDA aprovou a semaglutida como tratamento para a obesidade e o sobrepeso, além do diabetes tipo 2. Em março, a versão oral da semaglutida – que é do mesmo laboratório e leva o nome de Rybelsus – chegou oficialmente ao Brasil.
No entanto, a caneta ainda tem a maior parte das atenções dos pacientes. “O Ozempic atualmente é o mais utilizado e é a droga mais nova no mercado. A tendência é que aqui seja liberado também em bula, mas a gente já consegue usar com segurança”, afirma a endocrinologista Adriana Moura.
Um estudo publicado no ano passado, no The New England Journal of Medicine, mostrou que os participantes que receberam injeções semanais de 2,4mg de semaglutida tiveram uma perda média de 15% de seu peso. Ao contrário do Victoza e do Saxenda, que usam doses diárias, o Ozempic tem uma aplicação semanal. Essa seria uma das razões que explicam a febre, já que tornaria as aplicações mais práticas.
Daí um dos problemas de se automedicar: quem faz isso nem sempre leva em conta que o tratamento é de longo prazo. Assim, dificilmente uma única caneta vai fazer com que o objetivo final seja alcançado.
“De nada adianta investir mil reais em um mês, perder peso e depois ganhar. Inibir apetite por um mês não é suficiente para uma mudança de hábito com exercício e nutrição. Tem que ser um investimento com planejamento”.
Não é qualquer pessoa que quer perder peso que pode ou deve usar esses medicamentos. Para a maioria dos médicos, quem tem o objetivo de perder apenas dois ou três quilos – ou até cinco, a depender dos hábitos – deve evitar. Em geral, esse emagrecimento pode ser alcançado com alimentação balanceada e exercícios físicos.
“As indicações formais são de usar no sobrepeso com comorbidades associadas ou na própria obesidade. Esses critérios seriam definidos pelo IMC, pela avaliação metabólica do paciente e pela repercussão clínica, que individualizaria cada caso”, continua Adriana.
Avaliação
Essa avaliação é feita de forma individual por cada médico diante de cada paciente. Muitos pedem exames prévios para avaliar outras condições, de acordo com a médica Carla Freitas. Assim, essa abordagem pode ser feita por uma equipe multidisciplinar, que inclui nutricionistas, psicólogos e educadores físicos.
“Se eu estiver diante de um paciente com hipotireoidismo, eu preciso não somente do uso de uma dessas medicações como também agir sobre o tratamento do hipotireoidismo. Preciso tratar tudo em conjunto para um resultado mais satisfatório e consistente”.
A jornalista Lorena Morgana, 27, usou o Ozempic entre fevereiro e maio deste ano. Além do emagrecimento, a avaliação do médico dela era de que a substância ajudaria na performance de seu pâncreas, que estava muito acelerada.
Ela tinha acompanhamento tanto do nutrólogo quanto de sua equipe, que incluía enfermeiros e nutricionistas. Começou de forma presencial, em Vitória da Conquista, e continuou sendo supervisionada de forma remota em São Paulo, onde mora. Isso continuou até a consulta de retorno presencial com o médico.
“Não senti nenhum efeito colateral negativo, como enjoos ou mal-estar. Mas tive uma perda drástica de apetite. A sensação é como se meu estômago tivesse diminuído pela metade”, conta ela, que não fez uma dieta muito restrita mas passou dois meses e meio sem ingerir álcool. Além disso, manteve atividades físicas leves e moderadas por até três vezes por semana.
Ao final, Lorena perdeu cerca de 10 quilos e considera que foi uma experiência positiva. “Antes de iniciar o tratamento, tive que fazer uma bateria de exames e contava com a equipe do médico para tirar dúvidas e me explicar o que quer que fosse. Mesmo com esse suporte, ainda me pegava insegura no início, com medo de ter efeitos colaterais. Mas confiei nos profissionais e, no fim, saiu tudo como esperado”, completa.
Riscos
Os enjoos e náuseas, porém, estão entre os efeitos colaterais mais comuns desse tipo de medicamento. Essas reações vêm justamente da sensação de saciedade exagerada, segundo o nutrólogo Washington Abreu. É preciso, portanto, levar em conta os riscos de situações como a hipoglicemia.
“Dependendo do grau de hipoglicemia, a pessoa pode realmente precisar de atendimento médico”, alerta.
A médio e longo prazo, o paciente pode desenvolver também doenças relacionadas ao mau funcionamento do estômago e do intestino, como gastrite, constipação e gases. Em casos mais raros, há relatos até mesmo de pancreatite, a inflamação do pâncreas. Além disso, se a pessoa não tem orientação, pode até ficar com hematomas por não aplicar a injeção de forma adequada ou nos locais mais indicados.
Sem acompanhamento, pacientes podem ter até desnutrição, diz especialista
Mesmo que as ‘canetas emagrecedoras’ tenham a função de inibir o apetite, os pacientes que usam esses medicamentos não devem descuidar da alimentação. Como alerta a nutricionista Carolina Dias, existem pacientes que chegam a ter desnutrição.
Esses casos, em geral, acontecem quando as pessoas decidem tomar as substâncias por conta própria.
“Uma vez que você está com a receita médica, é necessário que também busque um nutricionista para fazer uma dieta balanceada de nutrientes, vitaminas, carboidratos”, cita.
Entre as consequências da falta de nutrientes adequados estão a queda de cabelo, enfraquecimento de unhas, fraqueza, desmaios e hipoglicemia. “Inclusive, já chegou paciente para mim que tomou o remédio e perdeu 12 quilos em 60 dias, mas veio com queda capilar pela desnutrição porque não conseguia comer. Então, tem que ter muito cuidado”, enfatiza.
Esse acompanhamento com nutricionista não deve acontecer apenas durante o uso dos remédios, mas também após o desmame. Se a alimentação não for balanceada, há riscos de que a pessoa volte a ganhar os quilos que perdeu.
“Mas a pessoa tem que se alimentar bem, inclusive para ter energia para praticar atividade física. E o ideal é usar a medicação de forma controlada para também conseguir comer. Não pode ser uma dose que você não sinta fome nenhuma, porque comer é importante”, completa.