“Aos 17 anos, perante a destruição de parte da minha ilha, senti imperativo da solidariedade” – Diário de Notícias

Cidadão, no pleno sentido da palavra, garante direitos mas também traz deveres. Até que ponto, em geral, as pessoas são capazes de assumir essa dupla realidade da cidadania?

As análises que efetuamos, estudando as pessoas, as comunidades e as famílias afetadas por desastres ou catástrofes e a forma como os respetivos direitos são reconhecidos ou não, permanecendo invisibilizados ou potenciando formas de ação e de recuperação, procuram responder à seguinte questão: pode uma vítima tornar-se cidadão? Se sim, através de que processos? Tal ancora-se na clássica proposta de T. H. Marshall de distinção entre cidadania formal (direitos civis, normalmente associados à pertença a um Estado-nação) e cidadania substantiva (direitos sociais e políticos, caracterizados pela participação na vida pública). Como assinalou o próprio Marshall, a desigualdade que deriva do sistema de classes corre o risco de se institucionalizar, mesmo quando estamos perante uma cidadania formal. Daí a ênfase na questão dos direitos. As transformações da economia global, e a preponderância do neoliberalismo, conduziram a que as responsabilidades fossem reprivatizadas e os deveres dos e das cidadãs realçados em vez da componente social do sistema solidário do Estado. Para além da mercadorização do social, nesta fase do capitalismo na sua vertente neoliberal, a alternativa ao naturalismo tanto do nacionalismo como do liberalismo exige mais do que as meras instituições relacionadas com as leis ou os Estados, e até mais do que a própria cidadania em si. A criação de alternativas e de uma cidadania plena requer uma ação política coletiva pela justiça humana, assente na fórmula simples, proposta por Hannah Arendt, da cidadania como o “direito a ter direitos”, isto é, como o direito a pertencer a qualquer forma de comunidade política.

Somos exclusivamente cidadãos de um Estado ou é possível ser cidadão de entidades supraestatais, como a União Europeia, ou o próprio planeta? E isto para os direitos e os deveres?

A força das análises sociológicas reside na sua incidência nos processos sociais pelos quais se constitui a cidadania e se define os seus limites. O essencial é analisar como a cidadania é continuamente constituída e desafiada através da luta política. Partindo da definição lapidar de Hannah Arendt, a cidadania pode ser vista sempre como um pós-direito. O essencial é analisar como a cidadania é continuamente produzida e desafiada através da luta política e se afirma como um conceito relacional. Como não há qualquer essencialismo na sua base, a ativação de cidadanias várias, supraestatais ou planetárias, depende de que tipo de direitos e deveres podem ser mobilizados e consolidados em configurações institucionais específicas.

Ser cidadão hoje, numa democracia ocidental, até que ponto é diferente de ser cidadão numa ditadura moderna ou até na Roma imperial?

Ser cidadão e cidadã em qualquer contexto democrático ocidental ou não, para lembrar aqui o exemplo da Índia como a democracia com mais peso demográfico no mundo, implica a possibilidade sempre de participação, que pode ser de alta ou baixa intensidade, e a responsabilidade de quem dirige e governa. A pertença pressupõe a radical assunção de direitos e deveres e o princípio da igualdade como fundador. Como referiu Erik Olin Wright, o modelo normativo da cidadania, como inclusiva e igualitária, implica uma noção radical de democracia, em que o Estado e a economia capitalista devem-se subordinar ao poder da sociedade civil.

Na Europa Ocidental cidadania e nacionalidade são sinónimos. Num país, por exemplo, como a Roménia ou o Cazaquistão, cidadania e nacionalidade são conceitos diferentes, um tem que ver com relação com o Estado e o outro com etnicidade. Seria ideal o mundo coincidir mais com o primeiro caso?

A cidadania é um conceito múltiplo e diverso que se consubstancia em diferentes formas institucionais de consagração e de legitimidade. Existem Estados, como a Bolívia e o Equador, como tão bem analisou Boaventura de Sousa Santos, que consagraram nas suas constituições o princípio da multinacionalidade e da plurietnicidade, permitindo a confluência de várias formas de definição de direitos e deveres. O importante é o reconhecimento da diversidade do mundo que não conduza a exclusões a processos de exploração e dominação.

Quando foi a primeira vez na sua vida que sentiu que estava a ser um cidadão?

Senti que estava a ser um cidadão quando da ocorrência do sismo de 1980 na minha ilha de origem, a ilha Terceira na Região Autónoma dos Açores. Embora só com 17 anos de idade, perante a destruição de uma parte da ilha, perante a morte e o sofrimento, senti não só o imperativo da solidariedade e da entreajuda, mas também a noção clara da existência de valores mais vastos, que obrigavam a suspender a frequência do ensino secundário durante meses a fio, o adiamento possível do sonho de entrar no ensino superior e a ideia de, mais do que direitos e deveres, o importante era ser, estar e sobreviver, assumindo logo, com os/as colegas e os familiares, a dimensão política de qualquer desastre ou catástrofe.

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