A música que tira do prumo, a epilepsia musicogênica – UOL

V., uma jovem de 19 anos, pela primeira vez, sentiu um sublime êxtase ao ouvir música. Um pouquinho antes, folheava o cardápio à mesa de um restaurante, junto a seus pais. Havia uma canção executada despretensiosamente, a cumprir seu papel de fundo. Tudo previsível e tranquilo, até um solo de piano captor toda a atenção da moça. O som foi amplificado nos ouvidos dela, o resto ao redor ficou desfocado, sua mente sintonizava em harmonia apenas as notas musicais. Durou pouco, V. sentia um gosto estranho, mas um cheiro horrível. Estes sentidos, sem sentidos, também breves, foram substituídos por agulhadas percebidas a esquerdo em seu corpo.

Na sequência, ela teve a terrível impressão de que perdia sua vida, quando finalmente caiu, inconsciente, com o corpo em espasmos. Acordou minutos depois, lentamente. Ainda sem compreender o que acontecera, ela cedeu a uma avassalante necessidade de chorar. Chorou um choro bom, achou que as lágrimas a restabeleceram. Recuperada, a jovem foi levada a um hospital próximo. Lá, lhe disseram que o açúcar no sangue caíra demais, um risco enfrentado por diabéticos como V. A jovem estava em jejum e havia aplicado insulina, no horário de costume.

Meses depois, V descansava em uma praça quando sentiu pela segunda vez, aquele intenso contentamento. Aconteceu quando ouvia um piano, difundido por caixinhas de som, pertences de algum desconhecido. A mulher temendo estar com queda de açúcar, disparou até uma padaria por perto, precisava comer algo para não passar mal de novo, pensara. Engolindo um croissant, orgulhou-se por sua bem-sucedida estratégia, não sentiu o progredir das anormalidades.

Segura, retornou à praça, só que desta vez, assim que voltou a escutar o som do piano caiu inconsciente. Horas depois, conseguiu uma consulta com seu médico, que a encaminhou para um neurologista. Seu problema não era causado por variações de açúcar.

Em um hospital, eletrodos foram colados à cabeça dela. O neurologista monitorava a atividade elétrica cerebral, enquanto ela escutava músicas variadas, mas somente o som do piano mudou os fatos. Escutando o instrumento a moça volveu os olhos para a esquerda, com o olhar vazio, depois em expressão de pânico. Seus lábios moviam estranhamente, como se ela insistisse em provar algo de sabor ruim. Em seguida, V. se debatia em convulsões. Os registros de eletricidade revelaram que a crise se iniciara no lobo temporal direito. Anatomistas, no final do século 19, já sabiam que lesões nesta parte do cérebro, tornavam algumas pessoas incapazes de diferenciar música de barulhos desorganizados. O lado direito do cérebro é especializado em analisar ritmo, tons, e demais componentes melódicos, enquanto o lado esquerdo cuida da análise semântica. V. recebeu o diagnóstico de epilepsia reflexa musicogênica.

Epilepsia reflexa significa crises epilépticas provocadas por algum estímulo. Qualquer um pode afetar suscetíveis, como luz, água fria, e até mesmo, o simples ato de mastigar. Raríssimas pessoas convulsionam ouvindo música, V. apenas, ao som de piano. Um punhado específico de neurônios do lobo temporal direito de V respondiam exageradamente ao som de um único instrumento musical. Depois a atividade anormal se alastrava por todo o cérebro, como a atividade sísmica propaga-se pela Terra, a partir de um epicentro.

É intrigante a condição de V., sua vulnerabilidade tão seleta. Porém há um dado que torna tudo mais curiosos. A epilepsia de V. é uma doença autoimune. Há um autoanticorpo frequentemente produzido por pessoas com epilepsia musicogênica e por diabéticos jovens, o anti-GAD. Um autoanticorpo é um anticorpo que ataca estruturas corporais, ao invés de combater um elemento externo, que seria por exemplo, uma bactéria ou uma toxina.

Não sabemos ainda a real relação do anti-GAD com a epilepsia musicogênica e com o diabetes. Talvez, este seja apenas um marcador de uma disfunção imunológica, ainda misteriosa. Nossa ignorância é assustadora, mesmo assim, podemos fazer considerações importantes. A alta especificidade de uma doença autoimune, capaz de provocar um comportamento tão peculiar, como o de V, comprova que anticorpos podem influenciar nossa conduta. Talvez, um dia possamos manipular estas propriedades a nosso favor, ativando ou desativando áreas cerebrais, com a intenção combater depressão, dor crônica, vícios e epilepsia, por exemplo.


REFERÊNCIAS

1. Maguire M. Chapter 6. Music and its association with epileptic disorders. In: Progress in brain research. 2015. p. 107–27.
2. CRITCHLEY M. MUSICOGENIC EPILEPSY. Brain. 1937 Mar 1;60(1):13–27.
3. Gillinder L, Britton J. Autoimmune-Associated Seizures. Contin Minneap Minn. 2022 Apr 1;28(2):363–98.
4. Morano A, Orlando B, Fanella M, Cerulli Irelli E, Colonnese C, Quarato P, et al. Musicogenic epilepsy in paraneoplastic limbic encephalitis: a video-EEG case report. Epileptic Disord Int Epilepsy J Videotape. 2021 Oct 1;23(5):754–9.

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